Criminalidade o assusta? Exija prisões civilizadas

Análise

Um dos maiores dramas do Brasil contemporâneo é a desinformação, por incrível que tal fenômeno possa parecer em plena era da informação instantânea. Apesar de todo aparato comunicacional à disposição da humanidade, em países como o nosso a escassez de informações corretas induz os cidadãos a cometerem erros conceituais graves.

Um dos temas em que a ausência de informações corretas produz os maiores estragos é na questão da Segurança Pública. Conceitos medievais permeiam o imaginário do cidadão médio e o induzem a crer em “soluções” que beiram uma selvageria igual ou maior que a do crescente contingente dos que buscam no crime um “ganha-pão”.

Exemplo: pesquisa Datafolha realizada em abril do ano passado apontou que 93% dos entrevistados eram favoráveis à redução da maioridade penal no Brasil. Ou seja: quase todos esses entrevistados querem aumentar a população carcerária e colocar garotos junto a bandidos irrecuperáveis, que tratarão de “adestrá-los”.

O recente show de horrores no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, e os ataques na região metropolitana de São Luís ordenados pelos chefes do crime organizado de dentro das prisões são a versão maranhense do que promove o PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo.

O governo federal vem construindo presídios de segurança máxima para isolar os chefes do crime organizado, mas tem sido inútil. O crime organizado funciona como qualquer exército: quando um general cai, outro toma o seu lugar. Não adianta isolar pessoas, portanto. É preciso reformar o sistema, mas isso só governadores e deputados estaduais podem fazer.

Para entender, há que perscrutar o sistema carcerário brasileiro.

Levantamento do Instituto Avante Brasil, baseado em dados do InfoPen, do Ministério da Justiça, revela um dado estarrecedor: houve crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira entre 1990 a 2012. O Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária do mundo – 548.003 presos em números de 2012, ou 287,31 presos para cada 100 mil habitantes.

O crescimento da população carcerária no Brasil foi muito maior, por exemplo, do que a taxa de crescimento da população, que não passou de 30%. Ou seja: enquanto a população brasileira cresceu 1/3 em duas décadas, a população carcerária mais do que sextuplicou.

Detalhe: de lá para cá, esse contingente seguiu aumentando.

A grande questão é: por que, em pouco mais de duas décadas, a população carcerária brasileira aumentou tanto? O Estado de São Paulo é o maior responsável por esse fenômeno. Hoje, o mais rico e desenvolvido Estado da Federação detém, sozinho, 1/3 de toda a população carcerária brasileira.

Alguém poderia imaginar que o Brasil – e mesmo São Paulo, interior e capital – tornou-se mais seguro com essa verdadeira febre de encarceramentos que explodiu no país, mas é o contrário: quanto mais prendem, mais a criminalidade aumenta.

O grande paradoxo é o de que, simultaneamente, na última década o Brasil tirou mais de duas dezenas de milhões de pessoas da pobreza extrema e distribuiu renda como nunca. Alguns veem nesse fato uma contradição da teoria de que o aumento crescente da criminalidade se deva à carestia social – se temos menos pobreza, por que temos mais criminosos?

A explicação não chega a ser complicada. Ao longo dos últimos vinte anos – período em que a população carcerária explodiu no país –, a deterioração das condições dos presos fez surgir movimentos como PCC, cujo objetivo declarado é o de lutar por melhores condições prisionais.

Com as prisões cada vez mais superlotadas, a criminalidade se organizou dentro delas. Chefes do crime organizado, conforme iam sendo presos passaram a comandar de dentro do sistema carcerário as ações de suas organizações do lado de fora. A febre de encarceramentos, pois, fez surgir o crime organizado de uma forma como nunca ocorrera no país.

No imaginário popular, porém, a causa do crescente aumento da criminalidade ao longo das duas últimas décadas está nas leis “brandas” e nas condições igualmente “brandas” de encarceramento. É comum ver nas redes sociais e até na imprensa pregações pedindo castigos ainda mais inclementes no sistema prisional e encarceramentos mais longos.

Não existe um único especialista nessa área que concorde que é preciso superlotar ainda mais as prisões ou tornar a vida mais dura dentro delas.

Nesse aspecto, reportagem recente da jornalista da revista Carta Capital Cynara Menezes tem uma importância imensa por revelar apenas parte do horror que vige dentro de nosso sistema prisional. A matéria versa sobre um dos maiores motivos de rebeliões dentro dos presídios: a comida.

Sob o título “Os interesses que mantêm o fornecimento de comida aos presos”, Cynara revela que a terceirização no fornecimento de “quentinhas” para a população carcerária e a privatização de unidades prisionais provocaram rápida deterioração das condições de encarceramento.

Alguns trechos da matéria são esclarecedores.

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“(…) Entregues, com transporte pago pelo Estado, em delegacias, cadeias e presídios, as tradicionais “quentinhas” em embalagens de alumínio são alvo constante de queixas ao Ministério Público Federal (MPF) pelo mau cheiro, aparência, presença de insetos e alimentos fora do prazo de validade. Como se não bastasse, os contratos são renovados sem nenhum governante, independentemente do partido, parecer interessado em rompê-los. Um provável motivo: empresas de marmitas são importantes doadoras de campanhas eleitorais.

Não à toa, a alimentação é, ao lado da tortura e do direito à visita de familiares, uma das três principais causas de rebelião nas penitenciárias brasileiras. Há uma quarta razão, mais perversa e responsável pelo fortalecimento das facções que dominam os presídios. Embora previsto na Lei de Execução Penal e recomendado pelo Ministério da Justiça, a imensa maioria das unidades prisionais simplesmente não fornece itens de higiene pessoal aos detentos, obrigados a negociar sabonete, pasta de dentes e até papel higiênico com as organizações criminosas. Isso gera dívidas que continuam a ser cobradas inclusive após os presos serem libertados. E tornar-se a mais rápida estrada para a reincidência.

Denúncias de superfaturamento e falta de higiene no preparo dos alimentos pipocam em quase todos os estados. ‘O modelo adotado favorece a fraude’, afirma Eduardo Nepomuceno, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público de Minas Gerais. ‘As empresas superestimam a quantidade de presos, vendem um cardápio e entregam outro, e a fiscalização não existe. Como é possível medir mil refeições para ver quais pesam a mais ou a menos?’

(…)

Os especialistas ouvidos por Carta Capital são unânimes: não se trata de privatizar ou abrir novas vagas, mas de reduzir a superlotação e cobrar eficiência da direção dos presídios. Em termos alimentares, está comprovado, como sugeriu a CPI do Sistema Carcerário, que a comida melhora quando os presos participam de sua preparação, além de garantir ocupação, remuneração e redução da pena. Também influencia no cardápio a parceria com agricultores das regiões próximas aos presídios, como ocorre nas 11 unidades prisionais da Região Metropolitana do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo.

‘Quando preparada pelos presos, a qualidade da comida é muito superior àquela da terceirizada e custa menos’, diz Camila Dias, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, para quem as marmitas e seus ‘reis’ são um indício de que a privatização do sistema não é a saída. ‘Existe hoje um lobby fortíssimo pelo repasse da administração à iniciativa privada, mas as refeições demonstram que esse modelo não é sustentável’.

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O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) divulgou, ano passado, que há um déficit de vagas de 48% no sistema prisional do país.

1.598 estabelecimentos prisionais foram inspecionados em março de 2013 pelos membros do Ministério Público em todo o país. Esses estabelecimentos tinham, então, capacidade para 302.422 pessoas, mas abrigavam, à época, 448.969. O déficit, naquele momento, foi estimado em 146.547 vagas (48%).

O estudo divulgou que a maioria dos estabelecimentos não separa presos provisórios de definitivos (79%); presos primários dos reincidentes (78%) e por periculosidade (68%). Consequência: entre março de 2012 e fevereiro de 2013, foram registradas 121 rebeliões e 769 mortes. São números que só se vê em guerras.

Os números apresentados estão defasados. De lá para cá, a situação continuou piorando. E, se nada for feito, irá piorar ainda mais.

Contudo, fazer o que? É praticamente impossível convencer a sociedade de que prisões tão desumanas, além de não intimidar ninguém, constituem-se em usinas de formação de criminosos.

Nas televisões de todo país, programas policialescos inoculam medo e raiva na sociedade e esses apresentadores pregam, incessantemente, que as penas sejam ainda maiores, o que, se ocorresse, agravaria ainda mais uma superlotação que, para os chefes do crime organizado, são mel na chupeta.

Presos pobres e abandonados pelas famílias, como relata a jornalista de Carta Capital, não recebem do Estado sequer um sabonete para tomar banho. Não recebem papel higiênico. Remédios, só em último caso. Dormem uns sobre os outros, gerando abusos sexuais, contaminação, brigas. As celas fedem a excrementos e a comida estragada.

É o inferno na Terra. Alguém que passa anos nessas condições, dificilmente sai da prisão sem ter contraído graves problemas mentais. Os internos tornam-se mais violentos, mais revoltados.

Ainda assim, a maior parte da sociedade quer condições ainda piores de encarceramento, esquecendo-se de que não dá para encarcerar para sempre alguém que, por exemplo, roubou um aparelho de som de um carro ou que vendeu um pacotinho de droga. O indivíduo é preso, cumpre sua pena e depois é devolvido às ruas. Até porque, o sistema não comporta mais gente. É preciso dar espaço para criminosos que não cumpriram suas penas.

Os setores da sociedade que exigem penas mais longas e condições de encarceramento ainda mais desumanas são absolutamente impermeáveis à lógica. Sobre artigo recente publicado nesta página, um leitor comentou que “bandido bom é bandido preso”. São frases curtas assim que produzem o efeito deformador da realidade que fundamenta as atuais condições selvagens de encarceramento no Brasil.

Com efeito, a maioria da sociedade quer isso mesmo, que as prisões sejam torturantes. Quanto mais torturantes, melhor. Quanto mais o preso sofrer, melhor. Praticamente ninguém reflete que boa parte dos que são submetidos a esse inferno terão que ser devolvidos ao convívio social quando cumprirem suas penas. E que, após passar por tudo isso, estarão loucos.

O fato é que a sociedade, ao exigir condições desumanas de encarceramento, acaba produzindo em massa as feras que irão atacá-la. E concede ao crime organizado o que precisa, uma massa de manobra que os chefes criminosos usam em exércitos que colocam cidades de joelhos, como faz frequentemente o PCC em São Paulo.

E o pior é que a solução desse problema não é tão difícil quanto parece. Um presídio com capacidade para algumas centenas de presos custa em torno de uns quinze milhões de reais. Estima-se que o país precisa de cerca de 400 prisões para acabar com a superpopulação carcerária. Estamos falando, pois, de 6 bilhões de reais para resolver o problema.

Não chega a ser inviável. Por que, então, o país não faz esse gasto? Mesmo que esse número dobre com toda a infraestrutura que uma prisão exige, não chega a ser um gasto inviável se levarmos em conta que o fim do caos no sistema prisional desarticularia o crime organizado e interromperia o despejo de criminosos enlouquecidos nas ruas após cumprirem suas penas.

O país economizaria com repressão e até com o sistema de saúde, por incrível que pareça. Obra do historiador e pesquisador Luis Mir intitulada “Guerra Civil – Estado e Trauma” mostra que se a guerra entre o Estado e os criminosos fosse fortemente reduzida, os gastos de pronto-atendimento dos hospitais seriam reduzidos drasticamente.

Um dado dessa obra é impressionante: o maior gasto do sistema público de saúde no Brasil decorre do pronto-atendimento a traumas oriundos da violência e da criminalidade. Ou seja: se violência e criminalidade fossem drasticamente reduzidas, o sistema de saúde pública no país teria uma melhora exponencial e poderia se equiparar aos melhores do mundo.

Não se consegue, porém, sequer conversar com os pregadores das teorias de que “bandido bom é bandido morto” ou de que “bandido bom é bandido preso”. Não se consegue explicar à maioria da sociedade que bandido bom é bandido recuperado, ressocializado, reintegrado à sociedade.

E quem cria essa psicose coletiva? A mídia e os políticos. A guerra por audiência gera os programas que predispõem a sociedade a querer vingança contra os criminosos, sem se importar com as condições sociais que os fazem cair no crime. E os políticos espertalhões se apresentam como arautos dessa mentalidade, em busca de mais votos.

Neste ano eleitoral de 2014, esse fenômeno irá se agravar. Os candidatos a governador não irão prometer prisões que parem de produzir monstros que, uma vez tendo cumprido suas penas, serão devolvidos às ruas. Pelo contrário, irão prometer mais castigos aos presos. E os governadores são os responsáveis por esse caos prisional, pois controlam o sistema.

No Legislativo não é diferente. Deputados e senadores de partidos conservadores continuarão vendendo leis mais duras e prisões mais desumanas como “solução” para a violência e a criminalidade, e uma sociedade acuada, aterrorizada e literalmente dopada por uma mídia sedenta por audiência irá comprar suas promessas falsárias, realimentando o caos.