A monarquia bolivariana de S. Majestade Elizabeth II

Crônica

 

A decisão da Corte Suprema de Justiça da Argentina de que é “constitucional” a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, a dita “Ley de Medios” (ou “Lei da Mídia”), aprovada em 2009 pelo congresso argentino, gerou uma avalanche de críticas na imprensa escrita e eletrônica brasileira, assustada com a sensação de que vai se tornando inviável que a imprensa de qualquer nação democrática queira pairar acima da sociedade e das leis.

A lei que hoje vigora na Argentina colocará fim a uma situação insustentável que vigia na comunicação daquele país – situação que, em verdade, não difere muito da que vige no Brasil, ainda que, devido ao peso da “Globo” argentina (o grupo Clarín), por lá a concentração de propriedade de plataformas de mídia fosse um pouco pior.

O novo marco regulatório para a comunicação na Argentina, porém, não tem nada de inovador. Tanto quanto em qualquer grande democracia, agora, no país vizinho, passa a vigorar forte impedimento à concentração abusiva de plataformas de mídia, tais como um mesmo grupo de comunicação deter propriedade de jornais, revistas, gráficas, editoras, televisões, rádios, produtoras de conteúdo eletrônico, canais de tevê a cabo, provedores de internet e empresas de telefonia.

Todavia, a lei da mídia argentina também contempla uma outra face da regulação do setor, no que diz respeito a abusos dos meios de comunicação (impressos ou eletrônicos) em relação não só à privacidade das pessoas, mas, também, em relação a difamação, calúnia e injúria.

A grande imprensa brasileira vem qualificando como “bolivariana” a nova lei argentina por lhe parecer inspirada na regulação inaugurada na América do Sul pelo governo “bolivariano” da Venezuela, então governada pelo falecido Hugo Chávez. Contudo, a lei argentina não difere das que estão sendo feitas em toda parte do mundo.

Nesse contexto, sobrevém a dúvida sobre se a imprensa brasileira também considera “bolivariana” a Carta Real britânica, sancionada na última quarta-feira (30/10) por Sua Majestade Elizabeth II, a rainha da Inglaterra, para viger em todo o Reino Unido.

Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo, a rainha Elizabeth II “selou a criação de mais um órgão de regulação das atividades da imprensa britânica”. O mais um se deve à multiplicidade de órgãos de regulação das mídias naquele país.

O documento chamado pelos britânicos de “royal charter” – ou “carta real” – foi elaborado, em conjunto, pelo governo “conservador” do primeiro-ministro britânico David Cameron e pela oposição “trabalhista”.

O jornal ainda lembra que o ato real é “um dos principais capítulos do escândalo de 2011 que levou ao fechamento do jornal ‘News of the World’, do empresário australiano Rupert Murdoch, acusado de grampear telefones de maneira ilegal para conseguir informações”.

Tanto quanto no Brasil, ou na Argentina, no Reino Unido jornais e revistas esperneiam contra qualquer regulação. No Reino de Elizabeth II os barões da mídia apelaram até o último minuto à Justiça para evitar a assinatura da carta, mas tais pedidos foram sumariamente rejeitados porque, naquele país, ninguém tem o poder de impor vontades acima das instâncias legais, fazendo pressão, só por ter bilhões de dólares na conta bancária.

O novo órgão regulador que está colocando a mídia britânica em pé-de-guerra assim como na Argentina, poderá aplicar multas de até 1 milhão de libras (R$ 3,7 milhões), além de impor correções e pedidos de desculpas por parte de jornais e revistas.

A Folha informa, também, que a “royal charter” estabelece “um código de conduta que pede ‘respeito pela privacidade onde não houver suficiente justificativa de interesse público” e que “Qualquer pessoa que alegar ter sido atingida por reportagens poderá acionar o órgão”.

Ora, ora… O que diriam os órgãos de regulação britânicos se o “Daily Mail”, o “The Telegraph”, o “The Mirror”  ou o “The Times” publicassem na primeira-página uma ficha policial falsa do primeiro-ministro “David Cameron” ou uma acusação igualmente sem provas de que ele teria tentado “estuprar” um garoto de 15 anos, como fez a Folha, respectivamente, com Dilma Rousseff e Lula?

Por certo não ficaria por isso mesmo, como por aqui. Multa de um milhão de Libras ensinaria o congênere britânico da Folha a não ser irresponsável, mentiroso, criminoso mesmo, como foi o diário brasileiro naqueles episódios.

Para jornais e revistas britânicos e sua lengalenga sobre censura que emula a lengalenga latina, a regulação da mídia nas terras de Elizabeth II “Traz risco de influência política no controle da imprensa”. Como aqui, por lá a mídia tampouco perde a mania de querer governar e legislar: os veículos apresentaram uma espécie de “charter paralela”. Mas como o Reino Unido é uma nação civilizada e ninguém paira acima da lei, a ideia não foi aceita.

E para garantir que a lei “pegue”, apesar de nenhum veículo ser obrigado a aderir às novas regras todos terão que aceitá-las para não correrem maiores riscos em processos movidos pelo público que poderão ter que enfrentar na justiça britânica, pois ela já avisa que será mais dura com quem não se submeter às determinações do novo órgão regulador da imprensa.

Quem imaginaria que o Reino Unido se tornaria “bolivariano” sob o conservador David Cameron, não?  Ironias à parte, a regulação da mídia britânica se impôs porque aquela sociedade é esclarecida e sabe que um grupelho de famílias não deve poder falar sozinho, pois tal poder ameaça a todos independentemente de ideologias, o que explica o consenso entre governo e oposição nas terras de Sua Majestade.