Por que os médicos estrangeiros não podem fazer o Revalida

Análise

A discurseira do corporativismo médico tupiniquim contra o programa Mais Médicos, antes de ser mesquinha, arrogante e preconceituosa, é assustadora. O que assusta é a má-fé de hordas de médicos que tentam fazer um país inteiro de trouxa enquanto lutam para manter uma reserva de mercado que permite a quem estuda medicina (no Brasil) enriquecer rapidamente.

Além dos médicos espertalhões e mercenários – que, como se vê, existem às pencas –, os Conselhos Regionais de Medicina (CRM’s), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) têm desempenhado um papel de estelionatários, enganando a sociedade brasileira.

Primeiro, essa horda corporativista e estelionatária tentou vender ao país a teoria absurda de que um médico não pode fazer nada se não tiver à sua disposição equipamentos de última geração como tomógrafos e outros avanços da medicina, quando qualquer pessoa minimamente lúcida sabe que tal premissa não é só falsa, mas criminosa, porque incontáveis enfermidades podem ser eliminadas com uma simples consulta e alguns exames básicos.

Nesse aspecto, é imprescindível a leitura, logo abaixo, de artigo do médico brasileiro David Oliveira de Souza, professor do Instituto de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês e ex-diretor da ONG Médicos Sem Fronteiras no Brasil (2007-2010) publicado pela Folha de São Paulo neste sábado (31.8). O post prossegue em seguida

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FOLHA DE SÃO PAULO

31 de agosto de 2013

David Oliveira de Souza

TENDÊNCIAS/DEBATES

A vinda de médicos cubanos ao Brasil é irregular?

Não

Carta aos médicos cubanos

Bem-vindos, médicos cubanos. Vocês serão muito importantes para o Brasil. A falta de médicos em áreas remotas e periféricas tem deixado nossa população em situação difícil. Não se preocupem com a hostilidade de parte de nossos colegas. Ela será amplamente compensada pela acolhida calorosa nas comunidades das quais vocês vieram cuidar.

A sua chegada responde a um imperativo humanitário que não pode esperar. Em Sergipe, por exemplo, o menor Estado do Brasil, é fácil se deslocar da capital para o interior. Ainda assim, há centenas de postos de trabalho ociosos, mesmo em unidades de saúde equipadas e em boas condições.

Caros colegas de Cuba, é correto que nós médicos brasileiros lutemos por carreira de Estado, melhor estrutura de trabalho e mais financiamento para a saúde. É compreensível que muitos optemos por viver em grandes centros urbanos, e não em áreas rurais sem os mesmos atrativos. É aceitável que parte de nós não deseje transitar nas periferias inseguras e sem saneamento. O que não é justo é tentar impedir que vocês e outros colegas brasileiros que podem e desejam cuidar dessas pessoas façam isso. Essa postura nos diminui como corporação, causa vergonha e enfraquece nossas bandeiras junto à sociedade.

Talvez vocês já saibam que a principal causa de morte no Brasil são as doenças do aparelho circulatório. Temos um alto índice de internações hospitalares sensíveis à atenção primária, ou seja, que poderiam ter sido evitadas por um atendimento simples caso houvesse médico no posto de saúde.

Será bom vê-los diagnosticar apenas com estetoscópio, aparelho de pressão e exames básicos pais e mães de família hipertensos ou diabéticos e evitar, assim, que deixem seus filhos precocemente por derrame ou por infarto.

Será bom vê-los prevenindo a sífilis congênita, causa de graves sequelas em tantos bebês brasileiros somente porque suas mães não tiveram acesso a um médico que as tratasse com a secular penicilina.

Será bom ver o alívio que mães ribeirinhas ou das favelas sentirão ao vê-los prescrever antibiótico a seus filhos após diagnosticar uma pneumonia. O mesmo vale para gastroenterites, crises de asma e tantos diagnósticos para os quais bastam o médico e seu estetoscópio.

Não se pode negar que vocês também enfrentarão problemas. A chamada “atenção especializada de média complexidade” é um grande gargalo na saúde pública brasileira. A depender do local onde estejam, a dificuldade de se conseguir exame de imagem, cirurgias eletivas e consultas com especialista para casos mais complicados será imensa. Que isso não seja razão para desânimo. A presença de vocês criará demandas antes inexistentes e os governos serão mais pressionados pelas populações.

Para os que ainda não falam o português com perfeição, um consolo. Um médico paulistano ou carioca em certos locais do Nordeste também terá problemas. Vai precisar aprender que quando alguém diz que está com a testa “xuxando” tem, na verdade, uma dor de cabeça que pulsa. Ou ainda que um peito “afulviando” nada mais é do que asia. O útero é chamado de “dona do corpo”. A dor em pontada é uma dor “abiudando” (derivado de abelha).

Já atuei como médico estrangeiro em diversos países e vi muitas vezes a expressão de alívio no rosto de pessoas para as quais eu não sabia dizer sequer bom dia –situação muito diferente da de vocês, já que nossos idiomas são similares.

O mais recente argumento contra sua vinda ao nosso país é o fato de que estariam sendo explorados. Falou-se até em trabalho escravo. A Organização Pan-americana de Saúde (Opas) com um século de experiência, seria cúmplice, já que assinou termo de cooperação com o governo brasileiro.

Seus rostos sorridentes nos aeroportos negam com veemência essas hipóteses. Em nome de nosso povo e de boa parte de nossos médicos, só me resta dizer com convicção: Um abraço fraterno e muchas gracias.

DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 38, é médico e professor do Instituto de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Foi diretor médico do Médicos Sem Fronteiras no Brasil (2007-2010)

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Como se vê, é uma verdadeira safadeza tentar induzir as pessoas a acreditarem que médico só é útil se estiver em um hospital com equipamentos de última geração.

Vendo, portanto, que tal premissa não colou, os “nossos” médicos e entidades médicas espertalhões vieram com aquela história de “trabalho escravo”, por conta de um modelo de relação de trabalho dos médicos cubanos que existe inclusive no Brasil em cooperativas que não pagam direito trabalhista algum aos médicos cooperados.

Isso sem falar de que o modelo de contratação de cubanos que está sendo aplicado no Brasil é aceito até por países da União Europeia, para que se tenha uma ideia do nível de ridicularia desse discurso cretino.

Aliás, alguém já se perguntou por que, até agora, a parte da mídia que dá vazão a esse discurso criminoso sobre “escravidão” eximiu-se de ouvir os supostos “escravizados”? Não ouviu porque tem medo de que vejam que os médicos cubanos são pessoas preparadas, cultas e que, muito pelo contrário, estão felizes com o trabalho que farão no país.

Mas talvez o pior cavalo-de-batalha criado para cercear a vinda de médicos estrangeiros ao Brasil seja estarem exigindo que façam uma prova criada em 2011 para validar diplomas de profissionais formados no exterior que peca por ter um nível de dificuldade que mesmo os médicos formados aqui não conseguem superar.

Recentemente, apesar de incentivo de R$ 400 prometido pelo governo a estudantes de medicina brasileiros que quisessem participar do pré-teste do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos (Revalida), o Ministério da Educação não conseguiu o mínimo de participantes e adiou a realização da prova.

O pré-teste seria aplicado a concluintes do 6º ano de medicina a fim de “calibrar” o Revalida aplicado aos diplomados no exterior, mas o teste não ocorreu porque os estudantes brasileiros fugiram da raia. Assim, o Ministério da Educação tentará de novo no primeiro semestre do ano que vem.

As 32 faculdades de Medicina escolhidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), que organiza o exame Revalida, inscreveram 2.353 alunos, mas, como a participação é voluntária, somente 505 deles confirmaram a participação e o número foi considerado insuficiente para uma amostragem eficiente.

Isso ocorre devido ao grau de dificuldade do Revalida. Recentemente, o portal Terra publicou matéria que mostra que nem os médicos brasileiros formados seriam capazes de passar em bom contingente em um teste elaborado para reprovar. Leia, abaixo, trecho da reportagem.

O Revalida é alvo de uma série de polêmicas. A mais antiga delas é a de ser um exame fora da realidade, de muito difícil aprovação, voltado para manter a reserva de mercado para médicos formados no Brasil. Coincidência ou não, a média de aprovação em 2012 foi de 10%. ‘Os maus resultados pioram ainda mais a reputação dos médicos formados fora, mas os professores do meu curso passaram provas do ano passado para médicos brasileiros com CRM que não conseguiram acertar nem a metade’, critica Daniel (os candidatos ao Revalida pediram para ter seus nomes alterados pela reportagem)

Mas o pior é um fato que vem sendo escandalosamente escamoteado pelos médicos e entidades médicas brasileiros que querem manter essa reserva de mercado para si. O Revalida não está sendo exigido pelo programa Mais Médicos porque se os médicos estrangeiros fizessem o teste, o programa fracassaria. Mas não por falta de conhecimentos deles.

O que ocorre é que todo estrangeiro que se submeter ao Revalida e for aprovado ganhará o direito de exercer a medicina no Brasil. Ora, se um médico cubano, espanhol, chinês ou seja de onde for tiver direito de atuar em nosso país, poderá dar uma banana ao Mais Médicos e passar a atuar onde achar melhor e não onde faltam médicos.

A segurança do governo brasileiro de que os médicos estrangeiros não tentarão usar o programa Mais Médicos como porta de entrada para se estabelecerem em um mercado em que não terão dificuldades para encontrar empregos porque faltam médicos no país, pois, é justamente a falta de permissão para exercerem a profissão como e onde quiserem.

Mas, pelo jeito, o país ainda terá que aturar essa polêmica imoral por muito tempo – ou enquanto durar o Mais Médicos. As entidades médicas, a mídia e a oposição ao governo Dilma sabem que o programa fará muito bem ao Brasil e, portanto, temem o efeito eleitoral que deverá provocar.

Contudo, a gritaria tende a diminuir conforme a Justiça for rejeitando as medidas que estão sendo interpostas pelas entidades médicas. Conforme o Judiciário for mandando os doutores se catarem por tentarem impedir medida crucial para a sociedade visando só seus interesses corporativos, a essa gente só restará a sabotagem. E ela ocorrerá, isso é certeza.