Jornalista agredida pelas costas pela PM fala ao Blog

entrevista

A jornalista Gisele Brito é paulista, tem 27 anos e é repórter da Rede Brasil Atual, empresa jornalística que congrega veículos de rádio e televisão, veículos impressos e um portal de internet, e que é parceira do Blog da Cidadania há vários anos. A RBA está divulgando matéria em que relata o ocorrido com a sua repórter.

Em resumo, na última quinta-feira, em São Paulo, Gisele, no exercício de sua profissão, ao cobrir os protestos contra aumento do preço do transporte público foi vítima de uma agressão impressionante por ter sido praticada por um tenente da Polícia Militar, que, apesar de informado por ela de que estava ali trabalhando como jornalista, agrediu-a pelas costas.

A jovem jornalista atendeu prontamente à solicitação do Blog para lhe conceder uma entrevista e se mostrou especialmente conhecedora da questão que investiga com seu trabalho, oferecendo opiniões interessantes e surpreendentemente racionalizadas – após ter sofrido o que sofreu – sobre o problema que vem afetando grandes centros urbanos do país todo.

Confira, a seguir, a entrevista com Gisele e seu relato impressionante dos métodos de uma Polícia absolutamente despreparada para o fim que justifica sua existência, o de proteger o cidadão, demonstrando que foi pensada, pura e simplesmente, como força punitiva em lugar de uma força promotora de segurança.

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Blog da CidadaniaGisele, o que foi que aconteceu com você nessa manifestação em São Paulo na última quinta-feira? Em qual dos pontos da manifestação você estava?

Gisele Brito – Eu cobri [a manifestação] pela Rede Brasil Atual desde o início, às cinco da tarde. Subi com os manifestantes vindo do centro, pela Consolação, onde ocorreu o primeiro confronto com a Polícia – Que foi… Que é bem agressiva, é importante frisar, porque, mais do que uma agressão direta, como aconteceu comigo, o gás que ela usa é muito agressivo – e, então, houve uma dispersão grande em direção à [avenida] Amaral Gurgel.

Depois voltei à Consolação, minutos após a dispersão, e resolvi subir até a [avenida] Paulista, porque, parecia, lá é que estariam os acontecimentos. Permaneci por ali durante umas duas horas, período em que aquela avenida ficaria interditada para o trânsito.

Os manifestantes tentavam, a qualquer preço, chegar à Paulista pelas ruas transversais, mas havia vários bloqueios e eles não conseguiam. Havia muito gás, muita bomba, então eu não tenho precisão. Mas por volta das nove e meia a Tropa de Choque, a Rocam e a Cavalaria começaram a sair da Paulista e eu voltei com a massa.

Naquele momento encontrei um outro veículo do Terra, a gente estava comentando sobre a violência e procurando um lugar para se sentar, para escrever a matéria e uma equipe da Polícia portando cassetetes veio na direção dos manifestantes, que vinham na nossa direção – estávamos no meio dos dois grupos – e, então, me agrediram.

Blog da CidadaniaVocê foi agredida enquanto estava sentada?

Gisele Brito – Na primeira vez que me machuquei não estava mais sentada, eu tinha me levantado e corrido porque estava claro que a gente não poderia mais ficar ali sentados. Eu me levantei, corri e até bati numa pessoa que vinha em direção contrária, os meus óculos se quebraram e meu olho direito ficou machucado. Aí fiquei um pouco desnorteada e dei as costas à Polícia, mas eu não tinha intenção de correr porque ali no Masp tem uma espécie de um degrau que dá para um vão livre e dali não há por onde sair.

Como não tinha para onde ir, fiquei parada, achando que ficar quietinha ali me salvaria. Foi então que recebi a primeira cacetada, na nuca…

Blog da CidadaniaUm momento, Gisele: você foi atacada pelas costas?

Gisele Brito – Fui. E, depois, levei cacetada nas pernas, também nas nádegas e, quando me virei, já gritando que era jornalista e que estava trabalhando, levei com o cassetete no rosto.

Blog da CidadaniaComo era o policial que a agrediu?

Gisele Brito – Chamou-me atenção que era um dos poucos policiais negros, ali. Registrei bem o rosto dele.

Blog da CidadaniaApós ser agredida, o que fez?

Gisele Brito – Fui me abrigar com um grupo de policiais, onde achei que ficaria mais segura. Até porque eu queria falar com o chefe daquele grupamento para fazer um relato [da agressão], mas não consegui…

Blog da CidadaniaUma pergunta, Gisele: você esteve na manifestação anterior?

Gisele Brito – Estive na penúltima, em Pinheiros. Não na anterior, pois estava acamada. Nessa última, fui designada [pela RBA] para cobrir.

Blog da CidadaniaVocê notou alguma mudança no comportamento da Polícia? Você acha que ela estava mais violenta? A sua visão é a de que a Polícia está em um crescendo de violência?

Gisele Brito – É difícil dizer violência, Eduardo, porque, como eu disse, o gás é muito violento e em todas as manifestações houve uso de gás. Mas, assim, a postura na Paulista foi diferente, eu acho, porque não tinha manifestantes.

Eu vi os policiais jogando gás em ruas vazias. Eu suponho que foi para impedir que entrassem [na avenida], porque o gás fica no ar um período. A Polícia permaneceu na Paulista, durante muito tempo, sem que tivesse aglomeração. Quem fechou a Paulista, ontem, foi a Polícia.

Nos dois atos que eu cobri, como jornalista, percebi que em todos os confrontos a Polícia não usou o gás para terminá-los, mas para direcionar para onde a marcha iria, para dispersar a massa.

Blog da CidadaniaAndam dizendo que a pessoa que se identifica como jornalista achando que com isso obterá respeito do policial, predispõe esse mesmo policial a agredir por que a Polícia, supostamente, não gosta de jornalistas. O que você acha dessa afirmação?

Gisele Brito – Ah, não sei… Não sei se percebi isso na situação que eu vivi…

Bem, o repórter da Carta Capital fez um vídeo em que o policial ironiza o fato de ele ser repórter. Dizia: “Pode filmar, pode filmar…”, mas não percebi isso pessoalmente.

O que eu acho é que o próximo ato vai ser maior, porque a violência policial infla a causa dos manifestantes. Mas acho que os repórteres, por certo, vão ter uma postura mais cuidadosa e isso pode comprometer a capacidade deles de mostrar o que está acontecendo.

Para você poder relatar uma agressão que alguém está sofrendo ou mesmo uma agressão que a Polícia estiver sofrendo é necessário que você esteja onde as coisas estão acontecendo e se nesses lugares o trabalho do jornalista não é assegurado pela Polícia, eu imagino que a postura do jornalista vai ter que ser diferente.

Eu, por exemplo, agora teria muito medo de me encontrar sozinha com o policial que me agrediu.

Blog da CidadaniaGisele, sabemos que esse tipo de confronto violento entre manifestantes e policiais ocorre inclusive em países ricos. A sua percepção é a de que as coisas se desenrolam aqui como naqueles países ou aqui o resultado desses confrontos é diferente, para pior?

Gisele Brito – A nossa Polícia tem problemas de modo geral. Agora: se ali, na Paulista, cheio de repórteres, cheio de câmeras, com manifestantes, em grande parte estudantes da maior universidade do país, sendo muitos de classe média, acontece tudo aquilo, o que não acontece nas periferias?

Imagine o que ocorreu nos atos da M’Boi Mirim, imagine como é nas noites do Capão, nas noites do Clímaco, nas ocupações…

Eu acho que a gente tem uma Polícia que não está preparada para lidar com a cidadania. Infelizmente, a gente tem um passivo do período escravocrata, dos períodos ditatoriais e que não foram passados a limpo e, assim, temos a mesma Polícia hoje.

Eu cobri o primeiro julgamento do Carandiru. O que me chamou a atenção é que os policiais que foram julgados, bem como seus advogados, dizem que a Polícia entrou no presídio para “evitar mortes de presos” porque os presos estariam numa briga que poderia gerar tais mortes. Bom, essa mesma Polícia gerou 111 mortos.

A Polícia fechou a Paulista para impedir que os manifestantes impedissem o trânsito e foi a Polícia que impediu o trânsito. Ela vai dizer que tentou impedir a violência, mas ela praticou a violência. A gente não tem uma Polícia preparada.

Blog da CidadaniaGisele, você acredita que esse movimento contra o aumento das passagens teria como mudar de métodos para que a situação não chegasse a esse ponto de tensão ou você acha que os manifestantes estão numa linha correta que não tem o que mudar por estarem fazendo o que precisa ser feito e como deve ser feito?

Gisele Brito – Eu concordo com as pessoas que estão na linha de frente do Movimento Passse Livre (MPL). É uma manifestação muito grande e você não tem como controlar todas as pessoas.

Eu vi, várias vezes, brigas, discussões entre os manifestantes porque um queria tacar fogo, fazer uma barricada com fogo e outro achava que essa não seria a melhor estratégia. Algumas pessoas querendo destruir lixeiras e outras dizendo que aquilo não deveria ser feito. Algumas pessoas querendo impedir o fluxo do trânsito e outras dizendo que aquilo não era a melhor coisa a se fazer…

Ontem eu vi o designado pela manifestação para negociar com a Polícia. Parecia ser um rapaz de não mais de vinte anos e estava tentando negociar…

Eu acho que o pessoal da organização do MPL não tem como evitar que um ou outro faça atos de vandalismo.

Blog da CidadaniaDesculpa, Gisele, uma pergunta: o que você descreve parece um movimento anárquico. Seria isso ou não é bem isso?

Gisele Brito – Não, acho que não é um movimento anárquico.

Blog da Cidadania Então tem uma organização centralizada?

Gisele Brito – Tem uma organização central, mas o MPL é composto por muitos grupos. Tem pessoas de partidos tentando mediar, tem organizações sindicais fazendo mediação, mas, também, tem, aparentemente, grupos de anarquistas.

É um movimento que faz “uma nova política”, que está fora dos partidos, com movimentos sociais que assumem, que falam, que vão à frente, e com uma molecada que está no Facebook e que discute os detalhes das marchas, por onde vão etc., na rede social.

Para o pessoal mais maduro parecem meio anárquicos, mas eles têm uma organização.

Blog da CidadaniaVocê acredita, Gisele, que se essa organização dissesse “Nós não vamos à rua”, as pessoas não iriam mesmo ou iriam de qualquer jeito? Complementando, vi um dirigente do MPL dando entrevista ao Estadão e o que ele dizia era que se o seu grupo anunciasse que não iria à rua não adiantaria nada porque alguns iriam de uma forma ou de outra.

Você acha que o MPL mantém, ainda, condição de impedir alguma coisa?

Gisele Brito – Ontem começaram a surgir vários perfis “fakes” no Facebook convocando uma manifestação para hoje [sexta-feira, 14].  Porém, no perfil oficial do MPL foi anunciado que não, que a manifestação seria para segunda ou terça-feira, não me lembro direito…

O ato, quem chama, é o perfil do MPL no Facebook. Se o MPL não tivesse chamado o primeiro ato, as pessoas não teriam se organizado espontaneamente. Mas acho que se o perfil do MPL não fizer novas convocações, outras pessoas vão fazer e vão se reproduzir na internet do mesmo jeito.

Blog da CidadaniaEntão o movimento ficou incontrolável e as pessoas estão mesmo saindo de casa e indo àquele lugar para fazer o ato independentemente de qualquer orientação…

Pergunto: suponhamos que o governo recue da decisão de não reduzir o preço das passagens. Você acha que o movimento ficaria satisfeito com isso ou seria possível que continuasse na rua até obter a tarifa zero?

Gisele Brito – Eu acho que o movimento continuaria existindo pela tarifa zero…

Blog da CidadaniaMas nesse molde em que está?

Gisele Brito – Não sei… Acho que se a tarifa baixasse o ato perderia força. No entanto, o objetivo do MPL é convencer as pessoas de que elas têm direito de usar o transporte público sem pagar. Primeiro, estão fazendo campanha pela redução, que é mais factível pôr na cabeça das pessoas, pois muita gente ainda acredita que tem que pagar para usar o transporte público.

Mas eu acho que daqui a seis meses ou daqui a duas semanas, eles voltariam [à rua] para pedir a tarifa zero… Mas também não sei porque não sou da organização.

Blog da CidadaniaGisele, por sua proximidade profissional ao ter que cobrir as ações desses movimentos, você conseguiu descobrir se em alguma outra metrópole de qualquer outra parte do mundo que tenha um sistema de transporte público tão grande e complexo, com metrô, existe um sistema de tarifa zero para todos, indiscriminadamente?

Gisele Brito – Faz mais ou menos um ano fiz uma entrevista com o Lucio Gregori, secretário municipal de transportes de São Paulo na gestão de Luiza Erundina [1989-1992]. Ele foi a primeira pessoa, em São Paulo, que propôs a tarifa zero.

Seu projeto baseava-se em cobrar imposto progressivo [onde os mais ricos pagam mais] e com esse dinheiro bancar o transporte público; ele dizia que essa é uma decisão meramente política.

Blog da CidadaniaO que se nota, Gisele, é que é uma tese para a humanidade, porque o que eu pude apurar – e é isso que eu quero que você me responda, porque até agora tem sido difícil de obter essa resposta – é que em pequenas cidades dos Estados Unidos ou da Europa, por exemplo, tem passe livre, ou tarifa zero. Mas sobre grandes metrópoles, com metrô, sistema viário complexo, etc., não se tem notícia de nenhuma que dê transporte de custo zero para todos. Você saberia se existe algum centro urbano que chegou a isso?

Gisele Brito – Acho que algumas pessoas citaram, em algumas matérias, mas eu não me lembro, de cabeça…

Mas, enfim, acho que a gente paga R$ 3,20 de tarifa e se a gente cobrasse imposto de toda a população poderíamos pelo menos ter um custo menor. Se não fossem só os trabalhadores – que usam o transporte público – que pagassem, a gente poderia diminuir.

Blog da CidadaniaGisele, seria lícito concluir que parte da sociedade não confia mais nas Casas Legislativas para travar esse debate? Ou seja: esse setor da sociedade entenderia que os políticos não estão se sensibilizando e, assim, recorre a uma postura do tipo “Daqui a gente não sai se não baixar a tarifa” e, depois, “Daqui a gente não sai se a tarifa não for zero”?

Seria isso?

Gisele Brito – Eu acho que é uma coisa que pode estar acontecendo na sociedade, mas essa descrença total não é a principal característica. O Passe Livre, aqui em São Paulo, teve grande participação de vereadores, que se juntaram à causa e chegaram a levantar que haveria inconsistência nos valores das tabelas de custos apresentadas à prefeitura.

Esses vereadores, neste ano, não estão dando apoio ao Passe Livre. Mas o que eles disseram, em audiência pública, é que o preço das tarifas não é estabelecido pelo Legislativo, mas por decreto do Executivo.

Nesse aspecto, há uma proposta interessante do prefeito Fernando Haddad para usar os recursos da Cide para subsidiar o transporte público.

Blog da CidadaniaAgora uma questão pessoal. Após o trauma porque passou por conta dessa covardia da Polícia, você se sente preparada para voltar a cobrir essas manifestações outras vezes. E você não acha que o governador Geraldo Alckmin, com as suas declarações um tanto quanto intolerantes, estaria estimulando a sua Polícia a se sentir liberada para “descer o pau” nos manifestantes?

Gisele Brito – É, as declarações do Alckmin são sempre nessa direção. Quando você diz que “Quem não reagiu está vivo”, está sinalizando, para a Polícia, nessa direção. O policial deve saber o que faz ou não com uma arma na mão, mas as declarações do governador não têm sido exatamente felizes.

Blog da CidadaniaE o seu preparo para continuar esse trabalho, Gisele?

Gisele Brito – Eu vou continuar, é o meu trabalho, eu não tenho opção. Eu sou uma trabalhadora como qualquer outro. Mas com certeza eu e outros jornalistas vamos estar com medo e esse medo irá atrapalhar o nosso desempenho.

Blog da CidadaniaPois é, Gisele, trata-se de um drama contemporâneo e urbano. Todo trabalhador deve sentir exatamente isso, numa cidade como São Paulo. Sai de casa todo dia sabendo que pode ser agredido, pode tomar um tiro até da Polícia…

Enfim, Gisele, acho que todos estamos muito tristes com tudo isso e, neste caso em particular, quero me solidarizar com você e colocar este espaço à sua disposição.

Gisele Brito – Obrigada.