A menina que roubou o ódio

Crônica

Alguém disse que a política é a guerra sem sangue e que a guerra é a política com sangue. No Brasil contemporâneo, vige a primeira situação: há uma polarização entre dois grandes grupos políticos que está mais para guerra do que para política.

O ódio que opõe “petistas” e “tucanos” chega a ser palpável. Tem-se a impressão de que é possível segurá-lo nas mãos. Não é divergência de idéias o que opõe as militâncias de cada lado; é ódio mesmo.

Chega a espantar que o quadro político brasileiro ainda não tenha descambado para a violência. Atos violentos podem até não ocorrer, mas a violência retórica chega a dar medo, sobretudo àqueles que já viram a política deixar os pruridos de lado e virar guerra.

Esse incêndio de almas se retroalimenta através de uma imprensa partidarizada que, ao exacerbar a voz de um lado e sufocar a do outro, gera reações indignadas de ambos; uns por sentirem-se mais poderosos e outros por sentirem-se injustiçados.

Não se convidam simpatizantes ou militantes do PT e do PSDB para a mesma festa, a menos que se queira estragá-la.

Não há diálogo possível. Qualquer tentativa de dialogar logo descamba para alfinetadas, que descambam para irritação, que descamba para insultos e até, no limite, para ameaças. E quem pede comedimento é logo chamado pelos dois lados de partidário do outro lado.

Quem poderia imaginar que uma menina de 13 anos e que pesa 26 quilos, que não fala, que não anda e que tem a mente de um bebê seria capaz, se não de fazer os inimigos políticos dialogarem, de ao menos fazê-los conviver em um mesmo espaço sem se engalfinharem?

O signatário destas linhas escreveu sobre aquela menina, pois ela é sua filha. Um relato pungente, um pedido de ajuda, um desabafo sobre o mal que a acomete. Esse texto fez brotar, de centenas de comentários de leitores do blog, o melhor lado de cada um.

A menina Victoria, em sua fragilidade, exibiu poder de roubar o ódio desta página perdida em algum canto da internet.

Pessoas que alguns podem pensar que se odeiam coexistiram na caixa de comentários do blog por uma causa decente, a de ajudar um pai amargurado pela doença da filha a refletir e a decidir sobre um tratamento doloroso para ela.

Este blogueiro tem uma memória elefântica. Entre as centenas de leitores que registraram comentários de apoio à minha filha, “tucanos” e “petistas” uniram-se no mesmo espírito de solidariedade humana.

Sim, alguns poucos escaparam e continuaram odiando, mas não aqui nesta página, ficando confinados aos porões da internet, ao submundo da política. Aqui, não houve nenhum que tentasse explorar um momento de fraqueza do blogueiro com a doença de sua filha. Nenhum!

Foi a vitória de Victoria. Mais uma vez, ela me provou que tem capacidade de extrair o melhor das pessoas com seu sorriso luminoso e sua inocência angelical e inquestionável. Fez até meu lado místico aflorar, supondo que essa pode ser a missão dela neste planetinha.

Oxalá a menina que roubou o ódio desta página, ainda que por um átimo, permita que outros façam reflexão que fiz de quarta-feira à noite para cá, sobre quão inútil vem sendo essa divisão do país que a grande imprensa vende e que eu e vocês, leitores, acabamos comprando.

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Notícias de Victoria e a opinião que lhes pedi

Escrevo do quarto de hospital em que Victoria está. Daqui a pouco o dia amanhece. Victoria, além de roubar o ódio, roubou-me o sono.

Sobre a saúde de minha filha, quando escrevi o post anterior ela ainda estava em casa. Todavia, como previsto ela teve que ser internada.

A menina está com outra pneumonia. Além disso, a perfuração em seu abdome, pela qual se alimenta, começou a sangrar.

Não há boas notícias, por enquanto.

Sobre as opiniões relativas à decisão que a família de Victoria terá que tomar – fazer ou não um procedimento que pode lhe prolongar a vida, mas tornando-a mais triste e dolorosa –, prevaleceu, entre as centenas de comentários de centenas de pessoas distintas, a priorização da qualidade de vida.

Confesso que essa opinião eu já tinha, bem como a minha esposa e ao menos a minha filha expatriada na Austrália, Gabriela.

Escrevi, portanto, para que os amigos me ajudassem a fundamentar decisão já tomada por mim e pela família.

Graças à vossa generosidade e sapiência, eu e minha família, agora, sentimo-nos mais seguros: Victoria não fará a esofagostomia. Seu destino não está mais nas mãos do homem, mas da natureza. Ou, se preferirem, de Deus.

Não posso deixar de dizer, porém, que o que se produziu aqui, nas centenas de comentários dos leitores, foi poesia pura, filosofia alta e uma generosidade sem par. Foi de encher a alma.

Não sei como agradecer. Tentarei fazê-lo da única forma que sei, portanto: sendo sempre sincero com vocês. Doa a quem doer, agrade a quem agradar.

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PS: No sábado retomo os temas do blog. Precisei deste interregno, mas a vida continua.