Eles escandalizaram o templo do racismo em São Paulo

Crônica

Afrontar a elite branca e racista de São Paulo foi a estratégia de centenas de manifestantes – em maioria, negros – que, no sábado (11), saíram com bandeiras e faixas do largo Santa Cecília, subiram a avenida Higienópolis e ousaram entrar naquele que é o mais genuíno templo do racismo na cidade.

O Shopping Pátio Higienópolis foi inaugurado no dia 18 de outubro de 1999. Instalado no coração do bairro de Higienópolis, região de alto poder aquisitivo em que vive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é composto por mais de 245 lojas distribuídas em seis pisos.

Ano passado, o shopping foi alvo de outro ato público, o Churrascão da Gente Diferenciada, levado a cabo em protesto contra abaixo-assinado de 3 mil moradores “higienopolitanos”  que pedia ao governo do Estado que não construísse ali uma estação de metrô para não atrair gente pobre – ou, como preferiram chamar, “diferenciada”.

A escolha desse shopping para um ato público dessa natureza fez todo sentido porque não há outra parte da cidade em que o racismo hipócrita e visceral que encerra seja tão evidente. Só quem conhece o local é capaz de entender. A mera visita a ele desmonta a teoria de que não existe racismo no Brasil.

No Pátio Higienópolis, a sensação que se tem é a de estar em algum país nórdico. Só o que lembra que se está no Brasil são os empregados negros ou mestiços, tais como faxineiros, seguranças e alguns poucos funcionários das lojas. A clientela do shopping é quase que exclusivamente branca.

A manifestação foi convocada pelo “Comitê Contra o Genocídio da Juventude Negra” e protestou contra a reintegração de posse do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, contra a ação truculenta da PM na Cracolândia e contra o caso de uma funcionária negra da escola Anhembi Morumbi que alega que a direção a pressionou a alisar os cabelos.

Em um momento solene e apoteótico da manifestação dentro do shopping um refrão cheio de simbolismo, extraído do poema “Negro Homem, negra poesia”, de José Carlos Limeira, 56, um dos autores baianos de maior destaque na comunidade negra, foi entoado por centenas de vozes, para horror daquela elite perplexa.

Por menos que conte a história

Não te esqueço meu povo

Se Palmares não existe mais

Faremos Palmares de novo


Ver um pequeno exército de negros altivos entoando palavras de ordem enquanto enveredavam por um local em que são raros de se ver e, quando aparecem, estão sempre cabisbaixos e servis, escandalizou e intimidou a clientela habitual. Lojas fechavam as portas e madames debandavam, esbaforidas, rumo ao estacionamento.

A Folha de São Paulo colheu depoimentos das indignadas madames habitués do shopping sobre a “invasão” de sua praia. Suas declarações revelam toda a burrice do racismo.

Fiquei com medo que saqueassem a loja, podia ter tiros, morte. São uns vândalos, vagabundos

Achei ridículo esse negócio de racismo. Onde é que está? Veja a quantidade de seguranças e empregados negros

Dois depoimentos, duas provas incontestáveis de racismo e burrice. Será que se fosse uma manifestação de estudantes branquinhos da USP haveria medo de saques, tiros e mortes? Será que o fato de só haver funcionários negros, mas não consumidores, não prova o racismo e a desigualdade racial que infecta a sociedade?

Esse é só mais um dos capítulos da guerra contra o racismo e o higienismo racial e social do governo e de parte da sociedade de São Paulo. Foi travada onde deveria, em Higienópolis (bairro cujo nome não poderia ser mais apropriado). E, desta vez, as forças da igualdade racial e social venceram.

Veja, abaixo, vídeos da manifestação.

—–

Do site do PSTU (via Viomundo)

—–

Do leitor Chico Mendes, que participou da manifestação:

“02 de maio de 1967 e 11 de fevereiro de 2012. O que há em comum entre estas duas datas?

Naquele primeiro momento, vivia-se, nos Estados Unidos da América, um turbilhão de embates sobre a condição de negros e negras: um grupo de 29 panteras negras, militantes e guerreiros em prol de um tratamento igualitário, promovem uma entrada triunfal e convicta no Capitólio.

O congresso americano tomou um susto quando aquele grupo, aquela pequena onda negra adentrou a “Casa do Povo”. Estavam de armas em punho, pois, até ali, as leis permitiam que qualquer norte-americano portasse armas de fogo. Não era crime algum.

Um tabu e medo que perseguem a sociedade burguesa desde sempre, qual seja, armas na mão do povo, do eleitor. Entraram e fizeram seu discurso antirracista perante deputados brancos e assustados.

Pois bem: 45 anos depois, outra onda, de tamanho dez vezes maior mas com a mesma demanda, adentra, de forma surpreendente, símbolo da sociedade burguesa atual: um Shopping Center.

As armas que portavam não eram de fogo, eram armas verbais. Estavam armados, orgulhosamente, com a cor negra.

Militantes do movimento negro em São Paulo pegaram de surpresa a segurança do Shopping Higienópolis.  Era por volta de quatro da tarde quando uns 300 militantes adentraram rapidamente e provocaram um frenesi nas faces brancas e rosadas da elite privilegiada deste país.

Ultrapassadas as três portas principais, objetivava-se, agora, chegar ao ponto central da casa que é a antítese da “Casa do Povo”. Os seguranças tentaram impedir, havendo um início de tumulto, logo superado pela onda negra que fazia pressão para que não se parasse nos corredores.

Tomamos o ponto central com nossas bandeiras, com nossas palavras, com nossa cor preta. A disposição arquitetônica deste centro mercantilista é perfeita para este tipo de ato, pois dos vários andares poder-se-ia avistar o nosso grito de protesto.

As forças de segurança do Estado racista brasileiro estavam em nosso encalço, mas fizeram as intervenções de rotina. Os militantes do movimento negro se revezavam ao microfone para dar o recado nunca antes ouvido pela elite branca que gastava ali o dinheiro advindo do suor do povo negro deste país.

Os olhares de perplexidade foram a tônica. Incredulidade da burguesia por termos chegado até onde chegamos. Ouvir verdades nunca foi o forte dessa gente. Enfatizo o fato de que o alvo poderia ter sido qualquer outro Shopping, mas era preciso algo a simbolizar nossa história de exclusão.

Esse templo do consumo carrega em seu nome a característica eugênica de nossa elite branca pensante de fins do século XIX e início do século XX. Nossas palavras fizeram eco. Nossa intenção jamais foi reclamar participação e existência naquele ambiente de luxo. Nossa intenção era denunciar, olho no olho, quem vive à custa do suor do povo negro.

Encerramos a manifestação e nossa alma foi duplamente lavada pela chuva que caía sem cessar. Vivemos um grande momento de Panteras Negras com aquela entrada. O Povo negro deste país existe e vai exigir sua participação em suas riquezas, doa a quem doer.”