Belo Monte e o pensamento binário

Análise

Na matemática, sistema binário é um sistema de numeração posicional em que todas as quantidades se representam com base em dois números, zero e um (0 e 1). Os computadores, por exemplo, trabalham internamente com dois níveis de tensão, pelo que o seu sistema de numeração natural é o binário (ligado e desligado).

A metáfora é perfeita para ilustrar o que está acontecendo nessa discussão sobre a Usina de Belo Monte: ou se é contra ou a favor. Não há meio termo. Só preto ou branco, nenhum tom cinzento.

Mas esse pensamento binário só se aplica aos que militam contra ou a favor da obra, porque o conjunto da sociedade está perdido nessa enxurrada de dados e argumentos técnicos e, assim, pelo que percebi na primeira postagem que fiz sobre o caso essa maioria esmagadora ainda não conseguiu formar opinião, o que obriga muitas pessoas a se posicionarem contra ou a favor da obra com base em suas posições políticas pró ou contra o governo.

O primeiro post que este blog publicou sobre o assunto, na última quinta-feira, recebeu uma enxurrada de contribuições de alta relevância, com links diversos para estudos eminentemente científicos pró ou contra a obra, dados levantados pelos leitores e transcritos na própria caixa de comentários. Li cada um dos mais de 300 comentários, além de outros nas redes sociais Twitter e Facebook, e posso garantir que ao menos a caixa de comentários daquele post tem tudo o que se pode precisar para entender a questão.

O que mais falta nesse assunto, portanto, não são dados, mas tradução para uma linguagem simples que estabeleça os pontos de divergência e o que está em jogo.

Antes, porém, uma explicação. Como usei uma linguagem forte para me referir a vídeo em que atores e atrizes da Globo simplificam exageradamente o assunto, além de fazerem distorções e até de mentirem, militantes contrários à construção da usina trataram de distorcer o que escrevi, ao que oponho, agora, esclarecimento que antecede o relato do que apurei sobre o assunto com base nesse belo monte de dados que recebi dos leitores.

Eis a base das acusações:

Acusaram-me de usar argumento “ad hominem”, ou seja, quando se responde a uma crítica atacando quem a fez e não ao seu argumento. É uma bobagem porque argumentei, entre outras coisas, que houve má fé das celebridades do vídeo ao venderem energia eólica ou solar como alternativa à energia hidrelétrica.

Acusaram-me de qualificar como mal-intencionados todos os que são contrários à construção de Belo Monte, o que é outra bobagem porque critiquei exclusivamente os artistas da Globo que mentiram descaradamente, o que não significa que não existam aqueles que têm boas intenções e que usam argumentos aceitáveis contra a obra.

As críticas a Belo Monte se fundamentam exclusivamente em dois pontos: dano ambiental e dano às populações da região em que a usina será construída. Há também críticas absurdas, como a do vídeo das celebridades globais que diz que a obra sairá “do seu bolso” (do contribuinte) e que esgrime com o custo de bilhões para chocar as pessoas pela quantidade de dinheiro, mas esse não é um argumento sério. Parece até que o governo pegará esses bilhões e não colocará nada no lugar, sendo que construirá uma gigantesca usina hidrelétrica.

Então vamos aos argumentos sérios:

1 – Para o governo, Belo Monte é fundamental para assegurar o fornecimento de energia nos próximos anos, em um quadro em que a imprensa já noticiou fartamente como estamos no limite da capacidade de geração e distribuição de energia elétrica, o que pode gerar escassez no futuro próximo.

2 – Governantes das cidades no entorno da hidrelétrica creem em desenvolvimento e progresso, pois receberão investimentos dos empreendedores da obra e da União em uma região paupérrima e esquecida em que certas populações vivem ainda no século XIX.

3 – Liderança dos empresários locais afirma que obra pode trazer desenvolvimento e geração de emprego; novos negócios podem se formar na região.

4 – Engenheiros, biólogos e sociólogos ouvidos destacam que obra deve provocar seca na Volta Grande do rio Xingu e, com isso, prejudicar população local.

5 – Movimento de mulheres e entidades ambientais avaliam que o impacto da obra na região terá custo alto para a população local, já que alguns serão retirados de suas casas e índios e ribeirinhos podem perder navegabilidade.

6 – Agricultores de área que será alagada queixam-se de falta de informação. Alguns temem não receber indenização porque não têm documentos das suas terras.

7 – Moradores de casas de palafitas, na periferia de Altamira, acreditam que obra possa gerar empregos. Ficam preocupados, porém, sobre como serão as indenizações e a retirada daqueles que estão em áreas a serem alagadas.

8 – Comunidades indígenas como a Arara, na Volta Grande do Xingu, temem seca naquele trecho do rio. Afirmaram que vão resistir à obra e podem acampar no local da barragem.

9 – Comunidades de ribeirinhos, grupos que moram à margem do rio, também temem seca e perder a possibilidade de pesca, meio de sobrevivência de muitas famílias.

Além de Altamira, a hidrelétrica ocupará parte da área de outros quatro municípios: Anapu, Brasil Novo, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu. Altamira é a mais desenvolvida e tem a maior população dentre essas cidades, com 98 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os demais municípios têm entre 10 mil e 20 mil habitantes.

A região discute há mais de 30 anos a instalação da hidrelétrica no Rio Xingu.  Belo Monte será a segunda maior usina do Brasil, atrás apenas da binacional Itaipu, e custará pelo menos R$ 19 bilhões, segundo o governo federal. Esse debate, portanto, não é novo e a obra foi planejada pelo governo Lula, na década passada, tendo todas essas questões presentes.

O vídeo abaixo trata das demandas contrárias a Belo Monte e exprime bem o sentimento contra a obra. Deve ser visto para que se entenda a base de apoio sólida que gera esse sentimento.

Aqui entra em cena o pensamento binário, essa verdadeira praga nas relações sociais e institucionais que dificulta, retarda e às vezes até impede que se chegue a soluções aceitáveis por todas as partes.

Por que você tem que ser meramente contrário ou favorável à obra, in limine (preliminarmente)? Por que não se pode ser favorável a uma obra necessária, mas desde que determinadas condições sejam cumpridas?

Não aceito discutir a inevitabilidade da matriz energética hidrelétrica. É uma falácia dizerem que é possível substituí-la por energia eólica ou solar. Essa não é uma discussão séria. O país está crescendo e precisa de energia, muita energia, e não encontrei nenhum estudo sério sobre ser possível substituir a atual e preponderante matriz energética brasileira a curto prazo. O governo dispõe de dados incontestáveis.

Não dá para discutir que o governo Dilma ou até mesmo o seu antecessor sejam malvados que querem maltratar as populações e o meio ambiente por divertimento ou que são corruptos que estão vendendo a região de Belo Monte para se locupletarem ou para apenas cederem ao grande capital.

Há uma questão clara em pauta: vai faltar energia no Brasil e não vai demorar, a menos que se construam hidrelétricas a tempo.

Há um país real que quer crescer e se desenvolver. A construção de Belo Monte imporá sacrifícios e causará danos ambientais, sim, mas é um preço que este país terá que pagar para se desenvolver e desenvolver, sobretudo, regiões subdesenvolvidas em que a pobreza e a ignorância imperam. É uma questão de custo versus benefício.

Não se pode, porém, construir essa obra sem garantir que as populações atingidas sejam colocadas no topo das prioridades e que compensações ambientais sejam formuladas. Mas a obra tem que ser feita. Não dá para levar a sério quem acha que pode impedir que o progresso chegue àquelas regiões, até porque um dos problemas deste país é a desigualdade de desenvolvimento regional.

O grande erro de ambos os lados, portanto, é não tentarem negociar esses pontos, pois não é possível que as idiossincrasias e até as razões sólidas de um pequeno grupo social se sobreponham ao interesse maior do país.

Por fim, quero esclarecer que votei em Dilma Roussef e não em Marina Silva. Esta última deixou o governo Lula e disputou a Presidência com Dilma porque discorda, por exemplo, de projetos como o de Belo Monte. Dilma ganhou a eleição, é quem governa e o projeto aprovado pela esmagadora maioria dos brasileiros contempla Belo Monte. Ponto.

Tenho confiança em que o governo saberá avaliar e promover as compensações sociais e ambientais, mas é prerrogativa de quem vence a eleição e ganha o governo implantar o projeto vencedor daquele pleito.

Este país tem Poder Judiciário e Poder Legislativo. Tudo que estiver em desacordo com o direito das populações atingidas e com a compensação ambiental possível pode ser contestado. Agora, não se pode estabelecer uma ditadura da minoria.

Fazer vídeos acusando o governo de estar jogando bilhões no lixo porque quer, pois haveria outras formas de gerar energia – será que as energias eólica ou solar sairiam de graça? –, e acusá-lo de estar querendo produzir uma catástrofe ambiental, é má fé, é desonestidade, é mentira e tem que ser denunciado.

Às vezes, portanto, a gente tem que usar recursos de retórica para chamar atenção e racionalidade. Sem qualificar esse debate, não chegaremos a lugar algum. Esse clima de fla-flu em nada contribui.

Quem é contra Belo Monte tem que entender que há um país que clama por desenvolvimento, ainda que alguns já contemplados pelas facilidades da vida moderna achem que já temos todo o desenvolvimento de que precisamos. Todavia, quem é a favor tem que ficar de olho para ver se os direitos que serão atingidos serão, também, respeitados.

O vídeo dos artistas da Globo, porém, induz a uma reflexão rasa. Por isso foi duramente criticado, aqui. Isso não significa que não existam pessoas sérias e razões concretas contra Belo Monte, mas que devem se submeter ao preceito democrático de que o interesse de todos prevalece sobre o de poucos, desde que resguardados os direitos destes.