Vinte e três famílias

Crônica

Ele ainda se encontrava naquela zona cinzenta entre o sono e o despertar quando percebeu que a mulher não estava mais na cama. A visão ia se acostumando às lâminas de luz do dia que cortavam o quarto através das frestas da persiana . O vulto dela se aproximando, a mão acariciando seus cabelos desgrenhados enquanto avisava que ia fazer umas “comprinhas”.

Deixou-se envolver novamente pelo sono e só voltou a despertar várias horas depois, quando a voz da companheira novamente o resgatou da sonolência:

— Olha o que eu comprei!

Sem óculos e despertando, demorou um tantinho a identificar o vestido curto e vermelho forte. Identificando, forçou a vista e percebeu que se tratava de uma paródia feminina da roupa de Papai Noel.

— O que é isso, mulher? – disse com um tom divertido na voz.

— Minha roupa de “mamãe Noel”. Não é linda?

— Não acha muito curta pra uma coroa da sua idade?

— Meu filho, a idade está na cabeça das pessoas. Sinto-me muito jovem.  Por que não posso usar um vestido um palmo acima do joelho?

Percebendo que a conversa enveredava pela região mais perigosa para um homem desde que Deus retirou a costela de Adão, a pantanosa região da vaidade feminina, recorreu logo ao jogo desleal, usando arma a que mulher nenhuma resiste.

— Claro que pode, amor. Você é linda, está em forma. Tem mais é que usar. É pra hoje à noite, claro…

— Posso até ficar na festa com ele… Mas não é pra isso, não.

Uma pontinha de ciúme acendeu-se em alguma parte do subconsciente.

— Onde é que a gatona pretende usar isso aí, vovó Tina?

Ela, assumindo um ar de cumplicidade e sentando-se à beira da cama:

— Ai, você não sabe que tragédia. Lá na praça Oswaldo Cruz… Passei por lá durante a semana, quando fui com a Carla ao shopping comprar o presente do amigo secreto. Tinha uma família inteirinha lá. Estão vivendo ali.

— Normal, né?

— Como assim, “normal”?! Tem crianças lá. Ficam pedindo esmola no semáforo. O marido da senhora com quem conversei está bebendo até cair todo dia. Mas o pior você não sabe…

Àquela altura, envergonhado pelo comentário idiota que acabara de fazer – dizer que uma família vivendo numa praça em pleno Natal é “normal” devia ter sido a coisa mais idiota que já dissera na vida –, teve até medo de perguntar, mas perguntou:

— O que pode ser pior do que uma família vivendo numa praça em pleno Natal?

— Não é uma família, são 23 famílias. Estão lá porque perderam tudo em alguma enchente no bairro deles no ano passado. Ficam perambulando pela região. Estão aqui, na Cubatão, na Bela Vista, ali nas margens gramadas da 23 de maio…

— Revoltante, mesmo… Mas o que isso tem que ver com a roupa de “mamãe Noel”?

— Acorda pra cuspir, meu filho! Esse negócio de blog ainda vai te pirar, viu! Vou levar presentes e doces pras crianças, claro. Agora à noite vão se reunir na praça. Você fica olhando a Victoria e o pernil que eu vou até lá, mais ou menos umas oito horas da noite, e não demoro.

— Ta, ta… Mas cuidado, hein!

— Deixa de ser preconceituoso.

— Não sou. Ora, bolas! Não é preconceito. Gente ruim tem em qualquer classe, até entre pobres. Pode ter alguém bêbado, esse vestido é meio curto…

Ela adorou o ciúme vindo à tona, claro, e ficou de bom humor.

— Vai, levanta daí, vem tomar café comigo, meu gatinho.

À noite, ela se paramentou toda. O vestido vermelho, o gorro, botas até o joelho e uma sacola de “mamãe Noel”, feita em tecido vermelho fino e brilhoso.

— Mas quem vai levar tudo isso? Está pesada…

— Eu me viro, meu bem. Sou mais forte do que você… Ih, ih, ih…

Pôs a sacola sobre o ombro enquanto, malemolente, caminhou até a porta de casa, numa clara provocação. Ele correu atrás dela, que fugiu pra dentro do elevador entre risinhos, mas ele a alcançou e começou a lhe fazer cócegas.

— Anda direito, senão você não vai…

E lá se foi companheira de uma vida, a mãe de seus filhos, avó de sua neta. Ele ficou lá, sentindo-se meio inútil. “Melhor ir cuidar do que me cabe neste latifúndio”, refletiu. Lembrando-se de que havia que conectar a dieta na sonda nasal de Victoria.

Ela retornou quase duas horas depois. Estava com um semblante tristonho. Ele foi logo pensando no pior. Teria sido agredida, xingada, roubada, molestada?!

— O que aconteceu?! Você está bem?!

— Claro que estou. Mas é triste… Que situação, a daquela gente. Mas você precisava ver como ficaram felizes. As crianças me rodearam. Gritavam: “Eu também quero, tia, eu também quero!”. Foi de cortar o coração.

— Mas são 23 famílias mesmo?

— São. Não estavam todas lá; ficam dispersos porque, senão, a polícia vem e expulsa. Ficam perambulando pela região. Mas tinha pelo menos umas 15 crianças, lá. Amaram os doces e os brinquedos… Mas é tão triste.

— Põe triste nisso. E a gente com esta fartura, aqui. E esta região… Tão rica… Tão insensível. Ainda bem que tem gente como você no mundo, meu amor.

— Mas eles falaram que estão com muita esperança na Dilma. O Bolsa Família, só, não ta resolvendo. É muito pouco. 23 reais por criança, disseram. Não dá nem pra comprar um botijão de gás. O Kassab disse que ia dar 50, mas não deu nada. E quando foram reclamar, ainda veio a guarda civil e desceu porrada neles.

O marido da “mamãe Noel” recolheu-se em pensamentos. Perguntou-se quem estava fazendo mais pelos desassistidos, pela justiça social. Se ele, com seus textos intermináveis, com seus atos públicos, com suas ações na Justiça contra a mídia golpista, ou se ela, com ações concretas, que, se não resolvem o problema, são o máximo que está ao seu alcance fazer…