A bolsinha vermelha

Crônica

Cristina irrompe pelo quarto do casal às sete da manhã de domingo. Vem da cozinha, onde preparava o café da manhã. Traz seu computadorzinho nas mãos. Enquanto caminha em direção ao marido, que ainda jaz em processo de despertar, repete, compulsivamente, frases que o fazem saltar da cama:

— Calma, minha filha! Calma, meu amor! A mamãe está aqui! Não fica assim!

O pai dessa garota que a tecnologia deixa ver que está se desmanchando em lágrimas no além-mar, em plena Oceania, do outro lado do planeta, sente um aperto no peito que parece que lhe fará o coração sair pela boca.

— O que foi?! O que aconteceu?!! Pelo amor de Deus, diz logo, Tina!!!

E aproxima o rosto do computador, como querendo mergulhar em sua tela e sair do outro lado do mundo:

— Bi, filhinha, que foi?! Gabriela, calma, fala com o papai!

Por segundos intermináveis, só se ouve soluços do outro lado do Skype. De repente, volta à mente do homem aquela garotinha que aos 5 anos, na volta da escola, chorava da mesma forma compulsiva porque um coleguinha lhe mostrara a língua durante o transporte escolar.

Subitamente, o homem sente-se um pouco mais tranqüilo. A filha é manhosa. Pode não ser nada tão grave.

Gabriela, a Bibi, ou simplesmente Bi – como o pai a chama –, foi criada como uma boneca de porcelana. Foram-lhe transmitidos todos os valores incutidos na alma dos irmãos, de forma que o mimo que recebeu dos pais não a tornou egocêntrica. Mas sempre foi frágil como uma flor.

Da esquerda para a direita, André (22), Carla (28), Gabriela (24) e Victoria (12)

O pai da emigrante brasileira que foi à Austrália estudar inglês bem sabe, como a mãe – que sabe muito mais –, que a menina não suporta agressões. Derrete de forma tão preocupante, sob qualquer maltrato, que perde o fôlego entre lágrimas e os soluços.

Sob os pedidos desesperados dos pais para que se acalme e relate o que se passa, a menina de 24 anos finalmente começa a balbuciar frases minimamente inteligíveis.

— A Rachel… Ela disse… Snif, snif… Que eu… Snif… O marido dela disse… Snif, snif… Que eu… Não disse, mas insinuou… Snif, snif, snif, snif!!

Rachel é a mãe das crianças Benjamin e Jessica, das quais Gabriela cuida para poder se sustentar na Austrália. É a sua principal cliente, ainda que tenha outras.

O pai da Bibi, agora mais preocupado, fala com autoridade com a filha usando seu nome inteiro, o que só faz quando o assunto é serio:

— Gabriela, fale com o seu pai. Pare de chorar. O que o marido da Rachel insinuou?

— Ele… Snif… Faz quase um ano, a Jessica me deu uma bolsinha vermelha… Snif… Um porta-moedas, sabe?

— E daí, filha? Fala logo!

— O marido da Rachel, o Marc, insinuou… Snif, snif, snif…

— Fala de uma vez, Gabriela, você está deixando o papai desesperado!!

— Ele insinuou que eu roubei a bolsinha, papai… Snif, snif, snif, snif, snif… Eu nunca… Snif… Roubei nada na minha vida, papai! Ela tem jóias, dinheiro em casa… Snif.. .Eu acordo de madrugada pra ir buscar ela no aeroporto com o carro dela, papai! Snif… Ela… Uma bolsinha, papai!… Snif, snif, snif, snif…

O pai sente o rosto esquentar. A respiração fica ofegante. O coração dispara. Mas tenta manter serena a voz com a qual procura acalmar a alguém que está, literalmente, do outro lado do Globo Terrestre.

— Você corre algum risco de denúncia, filha?

— Como denúncia? É uma bolsinha, papai… Snif… Não, eles nem cogitaram me demitir… Snif…

Gabriela é uma baby-sitter de primeira. No Brasil, cuidava da irmãzinha – hoje com 12 anos – que tem paralisia cerebral como só a própria mãe cuidava. A menina relata que a futura ex-patroa não achará ninguém que lhe faça o que fazia.

O pequeno Ben é doentinho – sofre de alguma patologia cardíaca. Rachel jamais achara uma baby-sitter que ficasse no emprego por dois anos, como Gabriela. As crianças da desconfiada Rachel, uma australiana rica, de meia idade, dão um trabalho danado.

— Eu… Snif… Não trabalho mais pra eles. Vou pedir as contas amanhã… Snif…

— Filha, volta pro Brasil. Você já tem emprego arrumado. Exercerá cargo de chefia em uma empresa, filha. Pra que se submeter a isso por mais três meses?

— É o meu sonho, papai. Vou fazer essa viagem nem que tenha que quebrar pedras. É o meu sonho… Snif…

Nova Zelândia, Ilha de Bali e China. Gabriela fará essa viagem em janeiro e, por isso, não voltará para o Natal. Diz que não sabe se terá oportunidade igual no resto da vida – o pai tem certeza de que terá muitas, mas os jovens sempre pensam que o mundo acabará amanhã.

Respeito e direitos são prerrogativas dos cidadãos de um pais como este, ao menos se forem brancos e de classe média para cima, como Gabriela – um pensamento horrível para uma manhã tensa, mas que é tão verdadeiro quanto a distância que separa esse pai dessa filha.

— Mas filha, aí nesse lugar será sempre isso. Você será sempre a imigrante, que as autoridades e o povo locais acham sempre culpados até prova em contrário. Venha logo pro seu país, meu amor.

— Pai: eu vou realizar o meu sonho.

Acabou-se a conversa. Quando essa menina diz que fará uma coisa, ela faz. Nunca conheci ninguém mais determinada.  Em cinco anos – dos 19 aos 24 –, pôs na cabeça que emigraria para a Austrália e voltaria de lá formada e fez isso.

Os recursos, economizou-os trabalhando como secretária por três anos. Juntou alguns milhares de dólares, conseguiu visto de estudante com direito a trabalhar, tudo absolutamente legal. Formou-se em inglês pela universidade de Cambridge. Sua meta foi cem por cento cumprida e ainda lhe restou tempo – e dinheiro – para uma viagem paradisíaca.

Ben é doentinho. Pobre menino. Tem 3 aninhos. Corre risco de vida antes de chegar aos dez. Gabriela ama aquelas crianças, mas seus pais trocaram esse amor que a futura ex-serviçal tem por seus filhos por uma bolsinha vermelha de cinco dólares.

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PS : O relato sobre o ato público contra o racismo que teve lugar na quinta-feira na Câmara Municipal de São Paulo será feito durante o domingo, agora que parece que o Blog finalmente voltou ao normal.