Um gol de Victoria

Crônica

Espero que este post incentive famílias brasileiras que estejam às voltas com abusos de planos de saúde como o que a seguradora Sul América está cometendo contra a minha filha Victoria, portadora de grave enfermidade neurológica, a que não baixem a cabeça e aceitem recusas ilegais e imorais de pagamento de procedimentos médicos por parte desses gananciosos e ignorantes comerciantes da saúde humana.

Victoria, minha quarta filha, hoje com onze anos, é portadora de Síndrome de Rett, modalidade de “paralisia cerebral” que só afeta o sexo feminino. Minha família descobriu-lhe a doença em 2000, quando ela tinha menos de dois anos. Trata-se de uma enfermidade degenerativa e de potencial destrutivo literalmente avassalador.

Aos onze anos, Victoria não fala, não anda, não tem controle motor algum, sofre crises epilépticas, desenvolve profunda escoliose e, de setembro do ano passado para cá, parou de se alimentar pela boca porque tudo que lhe passa pela garganta acaba deixando fragmentos nos pulmões durante o processo de deglutição, o que vem lhe causando sucessivas pneumonias. Nos últimos dez meses, Victoria ficou internada durante sete, sendo três deles na UTI – ininterruptamente.

Ano passado, Victoria fez uma gastrostomia, ou seja, seu abdome foi perfurado para colocação de sonda para que ela recebesse alimentação, água e até medicamentos diretamente no estômago, sem passar por processo de deglutição. A cirurgia, porém, foi malsucedida. Victoria sofreu rejeição da sonda, a “gastro” teve que ser “fechada” e, a partir dali, a criança está se alimentando por uma sonda que lhe entra por uma das narinas e vai até o estômago.

Contudo, minha filha sofre também, como conseqüência da moléstia que a acomete, de sialorréia. O que seja, salivação acima do normal. Essa salivação fica parada na garganta da criança e, assim, parte acaba sendo broncoaspirada pelo pulmão, o que a está fazendo, literalmente, afogar-se na própria saliva.

A cada dia que Victoria produz sialorréia e broncoaspira, corre o risco de contrair uma pneumonia grave, possivelmente dupla. Os médicos já nos avisaram de que, nesses casos, a probabilidade de óbito vai a 90%.

Tentou-se, ano passado, quando minha filha sofreu a gastrostomia, retirar-lhe as principais glândulas salivares, localizadas sob a mandíbula. Por alguns meses, a sialorréia diminuiu. Mas, no decorrer deste ano, parece que as glândulas seccionadas regeneraram-se e, assim, a salivação não só voltou com força, mas parece que aumentou.

Equipe médica composta de gastroenterologista, otorrinolaringologista, pediatra e fisiatra recomendou que a criança não sofra novas intervenções cirúrgicas para diminuição da sialorréia – há vários procedimentos cirúrgicos possíveis, alguns invasivos demais, e ela pode não suportar. A solução seria aplicação de botox na cavidade bucal, tratamento conhecido como “botox salivar”.

Ocorre que na bula do botox não figura esse tipo de utilização para a substância, de forma que o plano de saúde Sul América não autorizou.

Essa foi a desculpa alegada. Contudo, dos médicos até as enfermeiras do hospital todos sabem que a recusa se deve ao custo do procedimento. Que nem é tão alto, mas que terá que ser repetido quantas vezes for possível para que se tente “trabalhar” Victoria com fonoaudiologia para que volte a se alimentar por via oral.

Detalhe: minha filha está se afogando na própria saliva. Se esse processo não for interrompido, em poucos anos ela morre. E mesmo sendo interrompido, será por pouco tempo. Ela precisará de muita fonoaudiologia para voltar a deglutir ou morrerá, porque não pode fazer cirurgia para parar de produzir salivação intensa sem parar. É simples assim.

Como se não bastasse, há mais uma do plano de saúde.  Victoria, só neste ano, já esteve internada em janeiro, fevereiro, março, maio, junho e julho. Em todas as vezes, por problemas respiratórios. Passou a usar home care (UTI montada em casa pelo plano de saúde para economizar com hospitalização).

O serviço de home care, porém, se nega, sob anuência do plano de saúde, a dar o tipo de atendimento necessário.

Como o Lula anda dando o calote nos pagamentos que Serra diz que ele faz a blogueiros como eu, minha mulher tem que trabalhar. Ela trabalha comigo no escritório e não tem como parar. O escritório fica a 4 quilômetros de minha residência e a menina vai para lá conosco de segunda a sexta-feira, das 9  às 17 horas. O home care, porém, não aceita atendê-la, dia de semana, no escritório e, no fim de semana, em casa.

Além disso, o mesmo home care se recusa a fornecer enfermagem durante 12 horas diárias, sendo que Victoria tem quedas abruptas na capacidade respiratória, necessitando de balão de oxigênio e aparelho para monitoramento dos seus sinais vitais, e costuma ter crises epilépticas que podem precipitar até uma parada cardíaca.

O que restou à família de Victoria, portanto, foi recorrer à Justiça. Pedimos uma liminar para obter sentença que obrigue o plano de saúde a cumprir o contrato que com ele assinamos.

Abaixo, reproduzo a sentença do Exmo. Juiz de Direito doutor Danilo Mansano Barioni, da 19º Vara Cível, em medida cautelar de autoria de Victoria Guimarães, que tem como ré a Sul América S/A, que acaba de sofrer um gol da minha menina nesse campeonato da humanidade contra a assombrosa desumanidade desse triste sistema capitalista do qual todos somos vítimas, cedo ou tarde.

*****

PODER JUDICIÁRIO

Comarca de São Paulo

19º Vara Cível Central

Ação: MEDIDA CAUTELAR

Autor: ViCTORIA GUIMARÃES

Réus: SULAMÉRICA SAUDE S/A

Aos 19 de AGOSTO de 2010, faço conclusos estes autos ao Exmo. Juiz de Direito, Dr. DANILO MANSANO BARIONI

A relação contratual e sua abrangência quanto à cobertura da doença que acomete a autora vêm devidamente comprovadas.

Eventual negativa da cirurgia devido à alegada natureza experimental da toxina botulínica para o tratamento específico do mal que acomete a autora não se sustenta, pois não cabe ao plano de saúde eleger o melhor tratamento ao segurado.

Doutra parte, não havendo exclusão contratual para o tratamento da moléstia que vitima a autora, não parece razoável privá-la de medicamento que otimize a eficácia do tratamento, notadamente ante o reiterado agravamento das conseqüências da gravíssima moléstia.

A toxina botulínica é comercializada no Brasil, com liberação da ANVISA, e sua indicação para outros tipos de tratamento não torna, de acordo com a análise dos médicos que atendem especificamente a autora e estão a par de seu caso, descabida sua utilização para a doença.

Dizem: “No caso de Victoria, o uso de medicações off-label [nota do blog: que não figura na bula] para diminuir a sialorréia se dá por absoluta falência de outros métodos, incluindo atropina tópica, escopolamina, tricíclicos e até excisão cirúrgica de glândulas submandibulares” (fls.22).

(…)

O fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ademais, é escancarado, e refere-se mesmo à perda da vida pela autora acaso não receba o adequado tratamento.

Não há, ainda, fundamento legal para a restrição ao home care que já era fornecido, pois dele ainda necessita a autora, após liberação hospitalar.

Assim, defiro a liminar para determinar à requerida a autorização, em 24 horas, para utilização da Toxina Botulínica, realizando-se a cirurgia na forma da determinação médica, sob pena de multa de R$ 1.000,00 por dia em que protelada a autorização, e permanecer disponibilizando o “home care”, tudo na forma indicada por seus médicos credenciados para tratamento da moléstia da autora.

(…)

São Paulo, 19 de agosto de 2010

DANILO MANSANO BARIONI

Juiz de Direito