Presentes de um pai

Crônica

O dia amanhece. É domingo e estou deitado em um sofá-cama de couro artificial bege, sobre o qual estendi um lençol com o monograma do hospital bordado em verde.

A bomba eletrônica que injeta a “dieta” na sonda nasal colocada em minha filha Victoria, no leito hospitalar ao meu lado, apita intermitentemente, anunciando o fim da operação.

Esforço-me para abrir os olhos. O dia amanhece. Busco o relógio; são quase 6 horas.

Lembro-me de Victoria. Estará bem? Movo o pescoço; ela dorme serenamente.

Sinto-me como se tivesse sido atropelado. Dói tudo. O braço esquerdo, sob o peso do corpo, está adormecido. Viro de barriga para cima e começo a massagear os pulsos para fazer retornar a circulação.

Não conseguirei mais dormir. Levanto-me e desligo a bomba, que continuava apitando sem dó nem piedade.

Victoria dorme como um anjo com a chupeta entre os lábios, sugando-a como faria qualquer bebê de seis meses, ainda que minha caçulinha tenha 11 anos.

Sinto-me jovem, com a cena. A sensação é a mesma de quando velava pelo sono de Carla – que, neste agosto, completa 28 anos – quando ainda era aquele bebezinho gorducho com olhos negros e grandes como jaboticaba.

Victoria passou um sábado excelente, dentro do que pode haver de excelente para alguém internada há um mês e meio num hospital e que, dos últimos dez meses, passou sete internada.

Meu filho André, de 22 anos, ficou com Victoria de sexta para sábado. As enfermeiras me comentam sempre a capacidade dele de fazer a irmãzinha doente sorrir. Ele a aperta nos braços e lhe beija as bochechas, faz cócegas, diz frases em japonês…

André tem um sonho: quer conhecer o Japão. Ele adora tecnologia e cinema. É estudante de TI e viciado em mangás e videogames. Namora uma só moça, estuda, trabalha, ajuda a manter a casa limpa devido à mãe estar no hospital, onde também perde “baladas” de fins de semana para ficar com Victoria.

Já Gabriela, que ainda está na Austrália estudando, mas que volta no fim do ano, diz que é a “mãe” da Victoria. Antes de viajar, nunca houve um de meus filhos que a superasse nos cuidados com a irmã doentinha.

Como os outros, só me dá orgulho. Formou-se professora de inglês lá na Austrália, ainda que não pretenda dar esse uso ao aprendizado do idioma.

Elaborou o projeto de ir ao outro lado do mundo para conseguir o que diz ser um “diferencial” no mercado de trabalho, juntou dinheiro por três anos, abrindo mão de roupas, “baladas” etc. e foi lá, fez o que planejou e volta como planejou.

Voltando à primogênita, Carla, que me gerou minha quinta filha, a neta, Letícia Maria, hoje com 9 anos. Mãe zelosa, esposa, estudante e trabalhadora, tem uma forma mais gaiata de ver a vida. Irreverente, bem-humorada, tem mais de mim em sua personalidade do que os outros filhos.

Cristina, a mulher amada. Estamos casados há quase trinta anos e nos amamos como se fossem trinta minutos. Sexta-feira, André ficou com a irmã no hospital para que pudéssemos sair para jantar fora e namorar.

Fábio, marido de Carla, é um gigante de quase 2 metros de altura, mas tem o coração de um passarinho. Honesto, trabalhador, inteligentíssimo. Analista de sistemas formado. Ganha bem, tem um futuro brilhante pela frente.

O único defeito do meu genro poderia ser o de mimar demais a esposa, atendendo sempre aos seus caprichos femininos, mas em um país em que as mulheres estão sendo dizimadas pelos companheiros, dá gosto ver como minha menina é tratada pelo marido.

Sobre a quinta filha, a neta, Letícia Maria, aos 9 anos está quase do tamanho da avó, o que não é muita vantagem porque esta tem 1m56 de altura.

Para gente da minha geração, é sempre espantoso constatar como crianças dessa idade da minha neta dominam tecnologias e são capazes de conversar com adultos sobre assuntos que, quando eu tinha essa idade, jamais sonharia em conversar.

Isso deve ser bom, eu acho. Ou talvez as crianças estejam amadurecendo antes da hora, hoje em dia.

Mas, enfim, esses são os presentes para pais de verdade.

Poder ver os filhos maiores se tornarem cidadãos decentes como os meus três primeiros se tornaram ou poder ter um bebê para sempre, como no caso de Victoria, a quarta filha, são jóias que não estão à venda.

Meus filhos não devem se preocupar com presentes para mim, hoje. Não mesmo. Meus presentes são eles mesmos. Se não existissem em minha vida, ela não teria sentido.